O gerente administrativo do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), Leonardo Napoli, que participou do Dia Nacional dos Animais: Avanços e Desafios da Pauta Animal no Governo Federal, realizado no Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima (MMA) em 14 de março, do qual participaram representantes de diversas entidades envolvidas na causa animal, compartilha sua análise sobre os itens relacionados ao abandono animal, discutidos no evento.
Clínica Veterinária (CV) – Recentemente, apontou-se que o Brasil tem mais de 30 milhões de animais em situação de abandono. Quais são os principais desafios e quais os problemas relacionados aos animais e à sociedade?
Leonardo Napoli (LN) – No Brasil, temos uma cultura afetiva em relação aos animais, baseada na cultura latina, e muitas vezes os adotamos por impulso. Ao mesmo tempo, a formação educacional para a guarda responsável ainda é precária. Esses dois fatores, associados ao cenário da nossa sociedade – em que há muitas áreas de pobreza e vulnerabilidade social, com muitos cidadãos sem nem mesmo a atenção básica necessária à sua saúde e alimentação –, afetam diretamente os animais, pois acabam levando a um número altíssimo de abandono. Contudo, é importante ressaltar que não se pode tirar o direito das pessoas – sejam elas desprovidas ou não de recursos financeiros – de terem animais de companhia. Assim, nos últimos anos, essa área tem se desenvolvido bastante, principalmente pela atuação das organizações não governamentais, que têm estimulado a questão da proteção e do direito animal, impulsionada também pela nova estrutura familiar cada vez mais bem definida na sociedade: a da família multiespécie.
A partir do entendimento dessa nova estrutura, quando se traz o animal para dentro do convívio familiar e ele é considerado como um integrante da família, os cuidados que recebe acabam melhorando. Entretanto, o cenário ainda é bastante precário, e recentemente uma empresa relacionada à alimentação animal fez um levantamento e apresentou números bastante altos de abandono de cães e gatos no Brasil.
A estrutura para que se possa resolver essa questão é baseada em diversos pilares. Hoje em dia, fala-se muito de programas de manejo ético de populações de cães e gatos. Alguns pilares desses programas são a educação, a informação e a conscientização, processos demorados e complexos. A educação não é tarefa simples. Ao trabalhar a educação, não se deve fazê-lo apenas com as crianças, mas com a população de forma geral, sensibilizando-a para as questões do direito, da proteção e do cuidado com os animais. Além disso, é preciso considerar que, embora geralmente nos refiramos a cães e gatos, que são os principais animais domiciliados, pode-se estender essas questões para outras espécies, como coelhos e equídios, entre tantos outros. Nesse sentido, falamos da guarda responsável como conscientização da sociedade, aliada a outros pilares como a identificação dos animais, o censo populacional e muitos outros. Em especial, o censo é importante porque só podemos fazer uma intervenção a partir do momento em que a realidade é diagnosticada – ou seja, quantos e quais são os animais, em que áreas estão e qual a situação deles.
As esterilizações cirúrgicas não necessariamente são o principal ponto, apesar de que muitas vezes as pessoas assim a consideram. As castrações têm que ser um dos pilares e devem ser aplicadas de forma técnica e científica, respeitando as normativas e as legislações em todas as esferas que a elas se aplicam. O ideal é fortalecermos as políticas públicas voltadas ao manejo populacional ético de cães e gatos, baseando-as em seus diversos pilares. Já temos algumas construídas, e o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) tem uma diretoria voltada ao direito e à proteção animal. Há uma parceria desse ministério com o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) para que se possa atuar tendo por base conceitos e práticas de princípios técnicos e científicos, com a essencial participação da medicina veterinária e da zootecnia.
CV – O Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) tem a Resolução no. 1.236/18, que define maus-tratos contra animais e orienta sobre a conduta de médicos-veterinários e zootecnistas nesse cenário. Qual é o papel do Conselho Federal na parceria com o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima?
LN – A primeira coisa é que não temos como dissociar o médico-veterinário de todo esse processo. Quando falamos da questão da saúde e dos aspectos da segurança sanitária da população humana e animal, e inclusive da questão das zoonoses, esse profissional é essencial, e o Conselho Federal é que normatiza a sua atuação em relação a essas atividades. O CFMV tem sido pioneiro numa série de normativas que servem de referência até mesmo para o Judiciário; entretanto, as normativas para o manejo populacional ético devem ser estabelecidas e implantadas inclusive por outros órgãos, como o MMA e o Ministério da Saúde (MS).
A Lei de Crimes Ambientais (Lei no. 9.605/98) criminaliza o abuso, a crueldade e os maus-tratos com animais, mas não os tipifica muito bem. E o CFMV, por meio da Resolução no. 1.236/18, faz isso. Então ela acabou sendo uma referência para o Judiciário e o Ministério Público quanto à caracterização de maus-tratos a animais. Há também a Resolução no. 877/08, que se refere à proibição de cirurgias mutilantes em cães e gatos – como amputação de cauda, corte de orelhas, corte das cordas vocais em cães e retirada de unhas nos felinos. Mas as normas evoluem, e recentemente essa resolução foi alterada para permitir que os médicos-veterinários possam fazer o corte de orelhas em felinos que são castrados em programas de manejo populacional, visando a identificação visual, principalmente em animais ferais.
Há médicos-veterinários tanto no Ministério do Meio Ambiente quanto no da Saúde, e eles são primordiais para dar o suporte técnico a esses órgãos nos aspectos do manejo populacional de cães e gatos. Desde o ano passado, o CFMV atua junto com a diretoria do Departamento de Proteção, Defesa e Direitos Animais do Ministério do Meio Ambiente (DPDA-MMA) na construção de diretrizes para o manejo ético de populações animais. Temos um termo de cooperação técnica com o ministério para que possamos participar das construções das suas normativas e alinhá-las às nossas resoluções, evitando a fragilização do processo e fortalecendo a atuação do médico-veterinário. Se as normativas do MMA forem baseadas num olhar técnico-profissional, haverá mais segurança técnica, administrativa e jurídica.
CV – Há no horizonte a previsão de realizar um censo animal?
LN – Existe hoje um número bastante grande de animais domésticos nas residências. Sobre o censo, temos algumas cidades que já fazem isso como política pública, dentro dos seus programas de manejo populacional. Mas a ideia é que o censo animal seja nacional. Já há iniciativas, inclusive a proposta de que seja inserido como umas das questões do Censo do IBGE. Mas o MMA também tem esse olhar, e creio que em breve apresentará uma solução baseada no desenvolvimento de um sistema nacional para cadastro e identificação dos animais. A ideia é interligar os cadastros municipais e estaduais dentro de uma plataforma federal. Essa iniciativa auxilia o censo, porque já se começa a conhecer um pouco da realidade nacional e como é a distribuição desses animais nas diversas regiões do Brasil.
Como nós temos tido muitos projetos de esterilização, que são inclusive subsidiados com recursos públicos, alguns com emendas parlamentares, o cadastro nacional de cães e gatos será extremamente útil para a adequada aplicação dos recursos.
CV – O cenário de abandono é histórico e crescente no país. Como a pandemia ajudou a impulsionar essa situação e como ela contribuiu para o crescimento das famílias multiespécie?
LN – A pandemia acabou levando as pessoas a adotarem animais. O problema foi o abandono pós-pandemia. Além da questão sanitária vinculada à Covid, o aspecto mental das pessoas foi muito afetado, e muitas acabaram adotando animais. Eles foram adotados naquele período visando distração ou para fazerem companhia, e depois, quando as pessoas voltaram à vida normal, acabaram não tendo mais condições de cuidar deles.
A questão principal do abandono está vinculada às pessoas, pois elas não avaliam previamente a sua capacidade, seus conhecimentos e suas condições para adotar e, posteriormente, cuidar dos animais durante toda a vida deles de forma adequada. Em muitos casos, são movidas principalmente pela emoção.
CV – Fala-se muito em educação e campanhas educativas. Como esse processo pode ser realizado?
LN – As pessoas usam a palavra “educação” de forma muito corriqueira. O processo tem diversas fases – a de informação, a de conscientização e a de educação. São degraus! Trabalha-se principalmente na informação, que é muitas vezes chamada de educação. Uma palestra, a distribuição de um folheto informativo e ações publicitárias não necessariamente educam as pessoas. O processo educacional é complexo. Coloca-se esse tema como papel da escola, sem levar em consideração que o professor tem grande conteúdo para administrar, como as demandas de saúde bucal, de trânsito, de segurança pública, que podem sobrecarregar o trabalho do docente pelo grande volume de conteúdo a ser apresentado aos alunos, além dos conteúdos curriculares. Ao mesmo tempo, não se pode deixar de incluir a educação formal como um dos melhores instrumentos para transformar um aluno em um cidadão em relação aos cuidados com os animais.
A educação do adulto é um pouco mais complicada, e muitas vezes as ações punitivas se tornam necessárias, como a aplicação das leis, que acabam por ter um aspecto educacional. Entendo que há necessidade de normativas mais rigorosas para que a fiscalização seja efetiva e as situações de crimes contra os animais diminuam. Mas é importante ressaltar que se trata de um processo longo. O resultado dessas intervenções de educação e de formação será observado após alguns anos. Entretanto, devemos ser otimistas, pois o cenário vem evoluindo nos últimos 20 anos. Atualmente fala-se mais de proteção e de defesa animal, e creio que isso esteja aliado ao contexto da família com a participação ampliada dos animais. Atualmente, há correntes do direito atuando no direito animal, a partir do Art. 225 da Constituição Federal, fortalecido por outras leis, entre as quais a Lei no. 9.605/98, que dispõe sobre crimes ambientais, e outras legislações e normativas estão a caminho.
CV – Quanto à guarda responsável, como você vê a utilização e o oferecimento de animais como presentes?
LN – A questão do animal como presente é gravíssima. Ela é muito complicada, porque muitas vezes a pessoa não tem condições de receber esse “presente”. Trata-se de um processo que acontece por impulso, sem análise nem planejamento. A consciência a respeito do assunto tem melhorado, mas trata-se de um processo de aprendizado, e leva tempo para que a informação se consolide. Muitas ONGs têm feito trabalhos importantes em escolas, em redes sociais e por outros meios, e há uma série de ações nesse sentido. Mas trata-se da necessidade de alterar a cultura de uma sociedade, e isso é mais difícil do que a inserção de uma nova informação pelo sistema educacional.
CV – Há hoje um movimento no governo federal para lidar com o abandono de animais, mas essa questão requer o engajamento de outros atores. Em relação ao Congresso Nacional, os parlamentares também estão debruçados sobre o tema?
LN – Há uma frente parlamentar no Congresso voltada à proteção e defesa animal. Vários políticos participaram do evento realizado pelo Ministério do Meio Ambiente no Dia Nacional dos Animais, entre os quais deputados federais, senadores e mesmo vereadores. Eles relataram que praticamente todos os municípios têm algum representante no Legislativo que defende os animais. Além do movimento do Congresso, devemos considerar a importância dos legislativos municipais, estaduais e distritais, que têm um número já bastante grande de legisladores atuando pelos direitos dos animais. Apesar disso, os parlamentares relataram a grande dificuldade de aprovar essas leis no Congresso Nacional, porque, obviamente, existem grupos que são contrários a elas.
CV – Em relação à atuação das polícias Federal e Rodoviária e dos órgãos de fiscalização ambiental, vê-se hoje um trabalho intensificado para combater e impedir o tráfico de animais. Como esse crime reflete a questão de abandono?
LN – A questão do tráfico apresenta diversos aspectos. Em primeiro lugar, o tráfico de animais é o terceiro maior no mundo e gera uma movimentação financeira enorme, perdendo apenas para o de armamentos e drogas. Aqui no Brasil, a legislação é bastante protetiva para os animais, mas, diante da vastidão e das características das nossas fronteiras, a fiscalização e o policiamento são extremamente complexos. É difícil exercer todo o controle e a vigilância necessários. Temos uma fauna extremamente rica, que é apreciada no exterior. Além disso, há o tráfego que sai do Brasil e aquele que vem de outros países. As polícias e os órgãos ambientais estão cada vez mais aplicados no intuito de coibir esses crimes. Assim, mais uma vez voltamos às questões sociocultural e de educação. Em uma região economicamente fragilizada, identifica-se que a apreensão de animais na natureza está relacionada à sobrevivência das pessoas dali, envolvendo aspectos socioeconômicos que vão além da situação dos animais traficados. A veiculação de informações, a aplicação da legislação e a repressão policial têm contribuído para diminuir essas atividades em muitos locais. No evento do Dia dos Animais, destacou-se que as equipes do Ibama, ICMBio, Polícia Rodoviária Federal e Polícia Federal estão atuando intensamente. E, no caso dos animais silvestres traficados, além do altíssimo número de óbitos que ocorre durante todo o processo, um fato importante que precisa ser considerado é o abandono desses animais, que acontece com frequência. Muitas pessoas adotam animais provenientes do tráfico e não têm condições ou conhecimento para cuidar deles.
Fonte: Assessoria de comunicação do CFMV
Leo Barsan
CFMV
Leonardo Napoli
Nenhum comentário:
Postar um comentário